Princípios da Administração Pública na utilização dos recursos públicos envolvidos nas parcerias entre o primeiro e o Terceiro Setor
- 25/03/2020 16:25
O presente estudo traça uma análise a respeito da necessidade da observância dos princípios administrativos na gestão dos recursos públicos envolvidos nas parcerias entre o Primeiro Setor (Estado) e o Terceiro Setor (associações e fundações pertencentes à sociedade civil). As organizações do Terceiro Setor perseguem fins não econômicos e mobilizam seus recursos com o objetivo de atingir finalidades de interesse social .
Antes de adentrar ao tema principal, importa compreender que a substituição do Estado liberal burguês pelo Estado Providência (ou Estado Social, ou ainda, Welfare State), ocorrida no Brasil após a Segunda Grande Guerra, culminou com a ampliação das tarefas do Estado, passando este a intervir no plano econômico e no campo social. Este fenômeno acarretou em uma preocupação não somente no Brasil, mas em todo o mundo com o “gigantismo do Estado” e com a qualidade dos serviços por ele prestados .
Conforme Almiro do Couto e Silva , esta preocupação, somada ao altíssimo custo do Estado Social ocasionou uma “retração das fronteiras do Estado”, que além de devolver aos particulares tarefas que havia tomado para si, passou também a “entregar a particulares tarefas que anteriormente só ele desempenhava”. Com isso, no final do século passado, o Estado passou a percorrer o caminho da privatização e da terceirização.
Foi nesse sentido que a crescente demanda da população por serviços públicos, constitucionalmente atribuídos ao Estado, historicamente com dificuldades de cumprir sua função, ensejou que a execução destes serviços de competência estatal passasse a ser largamente transferida às entidades privadas sem fins lucrativos (Terceiro Setor) .
Assim o Estado passou a buscar novas formas de cooperação para atingir finalidades sociais visando maior eficiência, presteza e flexibilidade, incluindo neste contexto as Organizações Sociais (OS), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), os Serviços Sociais Autônomos (SSA) e as Organizações da Sociedade Civil (OSC).
Como forma de salientar a importância da reflexão apresentada por este estudo, destaca-se os contratos de gestão, instrumentos de concretização das parcerias entre o Estado e as Organizações Sociais assim qualificadas nos termos da Lei nº 9.637/98. Através destes contratos, as OS recebem recursos do Estado para a execução das atividades contratualizadas. Spitzcovsky caracteriza estas parcerias como “instrumento de privatização”, que reduz as atividades executadas pelo Estado, repassando-as temporariamente à iniciativa privada.
O destaque a esse tipo de parceria junto às Entidades do Terceiro setor se dá pelo fato de ser hipótese em que a licitação é dispensável, nos termos do art. 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93. Spitzcovsky discorre que muitas críticas podem ser feitas a esta modalidade de parceria, principalmente em decorrência da aludida possibilidade de dispensa. O autor entende que tal previsão fere a exigência do art. 175 da CF, que exige licitação sempre que o poder público pretender transferir a execução de serviços públicos a particulares, compreendendo que ao caso não se aplicaria a previsão do art. 37, §8º, da CF.
Entretanto, através do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.923/DF, o Supremo Tribunal Federal conferiu interpretação conforme a Constituição ao conteúdo do art. 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93. Ao tratar do tema, Gilmar Mendes destaca que o fundamento determinante para ter-se conferido interpretação constitucional à aludida previsão legal foi a observância dos princípios constitucionais da administração pública contidos no art. 37, da CF na efetivação dos contratos de gestão.
Também neste julgamento, o Supremo compreendeu que os recursos públicos transferidos às OS mantém sua natureza jurídica, devendo sua utilização ser regida pelos mesmos princípios. Não há o dever de a Organização licitar para efetivar suas contratações, mas deve ao menos fixar normas objetivas e impessoais no emprego dos recursos públicos.
Gilmar Mendes compreende que este entendimento trazido no julgado da ADI 1.923/DF deve ser aplicado também às parcerias firmadas entre o Estado e as Organizações da Sociedade Civil, cujo regime jurídico fora estabelecido pela Lei 13.019/14. O autor elucida que em sua redação original, esta lei previa expressamente que a contratação de bens e serviços com recursos públicos deveria seguir regramento próprio, aprovado pela administração e que respeitasse os princípios contidos no art. 37, da CF, tendo sido tal previsão revogada pela Lei nº 13.204/15.
Apesar da revogação, o autor defende que em razão de os recursos públicos repassados às Entidades manterem sua natureza jurídica, os princípios da administração pública devem ser observados e respeitados pelas Entidades, não por meio de licitação, mas através de processo público que permita a seleção da “possibilidade mais vantajosa à realização do objeto da parceria”.
Ao tratar sobre o regime jurídico das parcerias das Organizações da Sociedade Civil e a Administração Pública, Rosangela Wolff Moro não faz qualquer menção sobre a necessidade ou não da observância de tais princípios quando da utilização dos recursos advindos das parcerias. Já Spitzcovsky , ao tratar sobre as formas de parcerias entre o Estado e as Entidades do Terceiro Setor, discorre que: (1) quanto ao contratos de gestão firmados com as OS, estes devem ser “prestados sob a égide de regras do direito público”; (2) quanto às parcerias firmadas com os SSA, embora estes não integrem a estrutura da Administração Pública, estão sujeitos ao princípio da licitação, à realização de processo seletivo e à prestação de contas, vez que utilizam verbas públicas; (3) quanto aos Termos de Parceria firmados com as OSCIP, há a exigência legal de que estas entidades prevejam em seus estatutos sociais a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e eficiência; (4) quanto as parcerias voluntárias estabelecidas pela Lei nº 13.019/14 firmadas com as OSC, o autor não trata sobre a necessidade ou não da observância dos princípios da Administração Pública na utilização dos recursos advindos destas parcerias.
Note-se que a necessidade de observar os princípios da Administração Pública no uso dos recursos públicos pelas Entidades do Terceiro Setor não está explícito na legislação para algumas das modalidades de parceria. Como visto, no caso dos contratos de gestão firmados com as OS, o STF demonstrou entender que a natureza jurídica dos recursos públicos repassados às entidades não se altera, justificando a exigência da observância de tais princípios. Por analogia, compreende-se que, a fim de resguardarem-se, demonstrando boa-fé objetiva, sempre que estiverem gerenciando recursos públicos, é prudente que as Entidades do Terceiro Setor observem os princípios da administração pública, fixando normas objetivas e impessoais que demonstrem observância à legalidade, à impessoalidade, à moralidade, à publicidade e à eficiência.
Débora Bitencourt Machado Andreazza